sexta-feira, 26 de setembro de 2008

CARTA A FRANCISCO


Queria te dizer que ontem tive um sonho. Sonhei que caminhava contigo na praia a conversar sobre as últimas cores vistas no alvorecer. Estava nublado e as andorinhas e gaivotas se agitavam, pegando carona no vento que trazia as primeiras gotas de neblina. Sorriste para mim e corremos contentes em busca de uma boa árvore que nos abrigasse.

Sentamos no abrigo acolhedor. Eu estava exausta e tu me ofereceste amorosamente o colo para que eu recostasse minha cabeça cansada. Deitei-me e senti tuas mãos nos meus cabelos. Meus pensamentos iam sendo penteados à medida do teu carinho. Os nós antigos iam-se desfazendo, enquanto tu contavas como uma cotovia conseguiu te levantar da cama, onde por dias estavas. Tempos difíceis aqueles, contudo para tua brandura, era tempo de uma nova luz. A chuva caía plácida, lavando o mundo...o meu mundo. Chorei como a chuva, mas não de tristeza, chorei de gratidão.

Do teu colo, perguntei sobre a tua coragem para fazeres tantas coisas, para abandonares tudo o que tinhas e ires em busca daquela nova luz. Apenas sorristes calmamente, entendendo as limitações da minha alma pequena, que ainda só enxerga dificuldades, onde habita oportunidades. O irmão lobo, que acabara de chegar, respondeu aos meus questionamentos com generosas lambidas nos meus pés. Rimos todos. E talvez, nesse momento, eu tenha compreendido ainda mais a tua alegria.

Hoje, Francisco, eu acordei escutando o bem-te-vi que tu enviaste. São de amigos assim que precisamos: alguém para nos lembrar que bem nos viu. Ainda sinto minha cabeça no teu colo e tuas mãos nos meus pensamentos. Restam ainda muitos nós, meu irmão, porém eles ficam menos cegos contigo.

Olho agora para o teu retrato que uma grande amiga me deu, parece até que ela nos viu...nele há os mesmos passarinhos que voaram conosco. Penso que nunca fugirão de ti, pois tu também tens asas, Francisco. Tento acompanhar teus passos, mas ainda não tenho asas, o que me faz ficar bem atrás nessa estrada. Olho-te, então, de longe e aceno para ti, na esperança de um dia nos encontrarmos como no sonho. Ao mesmo tempo, tu me retrucas: eu estou contigo. E eu acredito. Por isso, toda vez que eu chorar, me lembrarei da chuva e sempre que eu sorrir, me lembrarei do lobo.

Parabéns pelo aniversário, Miramez me contou: é hoje. É um presente para todos n
ós o teu nascimento nesta Terra.

Obrigada, meu irmão, meu amigo companheiro, de Assis e do mundo inteiro.

domingo, 21 de setembro de 2008

"QUEM NÃO VIAJA, FICA!"


Sexta-feira fui ao encontro de uma paragem às minhas contemplações. Um lugar abençoado ao redor de um cajueiro que parece nos abraçar, quando lá chegamos. Ele estende os braços para que possamos usufruir do seu acolhimento, sustentando nossas redes com firmeza e suavidade. A sombra nos convida a uma boa conversa, uma boa música, brincadeiras de esconde-esconde e tudo o mais que pudermos inventar; todos viram crianças num piscar de olhos. De lá se escuta a voz do mar e, assim, ele vai nos embalando.

Pés na areia nos apoiam mais. O céu sempre amplo, sem edifícios a estreitá-lo, dá-nos uma dimensão maior do muito que podemos ser e seremos. A estrada é nosso guia de viagem. As árvores a se beijarem no alto, nos convidam a abrir ainda mais o vidro para entrar o perfume de ar fresco, nascido dessas copas fraternas. Um túnel verde se estende a nossa frente e por ele passamos de vidro e coração abertos. É a Reserva de Saltinho, cuja cachoeira ainda derrama água límpida, apesar dos usurpadores das riquezas naturais. A cerca e avisos demonstram o cuidado, os quais esperamos sejam respeitados. A natureza é uma grande professora, cuja lição precisa ser mantida atualizada, sob pena de esquecermos de nós mesmos.

Um final de semana inteirinho reservado ao deleite, à brecha do nosso tempo, cuja brevidade anda nos aperreando dia-a-dia. Chego a duvidar que o dia tenha ainda 24 horas e, garanto, não sou a única. A física deve ter alguma explicação para este fenômeno mundial, ou talvez, apenas a vida prática nos mostre o quanto nos enchemos de afazeres dos mais diversos. É a vida, dizem muitos. Ou, quem sabe, seja o que fazemos com a vida, para sermos mais exatos. Um hiato no dia, uma parada nos afazeres somente para contemplar, ouvir, absorver. É isto o que nos aconselha a consciência: pare, olhe, escute. Quase como um aviso de rodovia férrea. Se seremos atropelados ou se pegaremos o trem...isto é uma boa pergunta a uma escolha obrigatória.

Vates e Violas* no som do carro mostrou o intinerário:

"Planos que foram realizados
E transformados
Em motivos de viver
Marcas tatuadas são normais
Se ninguém faz
O tempo vai fazer"

Como o próprio grupo musical profetiza: 'quem não viaja, fica'. Melhor viajarmos, então, pois já ficamos demais. Boas companhias, boas conversas, atualizações de problemas, mas também de alegrias. Não há como calcular o valor de uma boa conversa, das risadas compartilhadas, da intimidade que nos mostra além do que os olhos podem ver. Um mar inteiro a nos encher a alma e os pescadores que ficam no meio da nossa caminhada na areia, dando-nos lições sobre paciência e persistência. Uma igrejinha à beira mar só pode mesmo nos abençoar, lembrando do santuário natural aos nossos pés, ou melhor, às nossas mãos. Ê vidão!

É hora de voltar. O retorno é sempre mais rápido. Chegamos. Muitos ganhos a contabilizar. Amanhã será um dia bem mais feliz. Cuidar de gente com marcas tatuadas pelo tempo, é tarefa do dia. A mala chegou mais cheia. Entre a bagagem, a notícia de mais gente nova no mundo. Notícias de longe, que chegam perto. A família cresce, graças a Deus. Todos a se entusiasmarem com os títulos novos: avô, bisavô, tio-bisavô, tia-avó...! E olhe que o dia ainda tem 24 horas!


*Vates e Violas é um grupo que passeia entre a poesia e a melodia bem trabalhada. Tem dois discos: "tudo o que é bom, presta" e "quem não viaja, fica"; eu, por sorte, tenho os dois.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

MEU POVO

Ah, que felicidade falar com alguém próximo, que se encontra distante geograficamente. De fato, essa tal de tecnologia pode ser um ganho imenso aos nossos corações. De repente, um telefonema e pronto: a distância encurta.

Descobri que Sementeiras pode virar ponte entre mim e os meus amados, situados a quilômetros de asfalto, terra batida e porteira quebrada. Porteira para sempre aberta, emoldurando o terreiro, onde, tantas vezes, 'trigueiro' respondeu aos meus apelos com um preguiçoso abano de rabo, para depois se levantar com os latidos habituais atrás do gado resistente ao sol, ao calor e resignado aos aboios inigualáveis do meu povo, da minha gente.

Meu povo, de calos nas mãos, sabe pegar com carinho uma rede para meu restaurador balanço. Meu povo que evita chorar, sem evitar a emoção. Varre o alpendre como a catar feijão na palestra costumeira, falando de quem se foi, de quem chegou, atualizando e repartindo o coração com quem está presente. Meu povo de riso alto, solto, cheio de cumplicidade e compromisso com o bem. Qualquer dia pode ser o primeiro de abril, pregando peças nos seus iguais, para logo em seguida rir às gargalhadas. Histórias que rendem dias, meses, uma vida inteira.

Assistimos aos nascimentos dos netos, sobrinhos nossos, que crescem com bravura e alegria em meio ao ciscado das galinhas, à poeira dos cavalos, ao cantar dos pintos, tão fartamente alimentados por quem chega de longe, carregando na mala um punhado de saudade para misturar com o milho, rapidamente providenciado por quem sabe alimentar a alegria de uma criança.

Sim, este é o meu povo. Alguns pequenos já escrevem 'Neto' no final do nome e parecem perpetuar algo que já está no gene, na genética familiar: a simplicidade. Quanto ela custa? Nada. Apenas um sorriso e abraço sinceros. Apenas valores semeados ao longo do tempo em terra brandamente adubada pelo bom exemplo. Exemplo de honestidade, de dignidade, de amor. Exemplos antigos, anteriormente trabalhados pelos nossos queridos ancestrais, que assistem tranquilos a colheita efetuada. Estes exemplos não morrem, não fenecem. São sementes germinadas e crescidas, as quais terão a missão de plantarem também. E assim, como diria na linguagem infantil: começar tudo outra vez.


Estas linhas molhadas vão para todos os filhos do Ludovico.
Muito obrigada por tudo.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

VIVA SETEMBRO!

Setembro chegou e com ele, dizem, chega também a primavera. Recife é uma cidade que gosta de surpresas. Às vezes me levantava, olhava o que o céu iria me dizer. 'Hum, sol'. Os passarinhos, para variar, felizes que só o quê, cantando e fazendo festa. Sem dúvida, o dia seria de sol. Entretanto, no percurso ao trabalho, algo ía se modificando e lá chegava às gotas finas que caíam com abundância. Por isso, já faz tempo, ando aberta a essas surpresas que a cidade quer nos oferecer e é interessante observar a mudança do tempo de um lugar para o outro. Que venha o que vier: o sol aquece e a chuva lava, o que mais podemos querer? O fato é que, nestes tempos, Recife nos faz olhar mais para o céu, uma grande bênção para uma cidade ser feliz: seus moradores olham mais para o céu. Isto pode nos fazer mudar o ângulo de visão e, quem sabe, olhar um pouco mais para o lado.

Lembrei de uma dissertação comentada que recebi há alguns meses sobre uma certa cegueira social. Repassei imediatamente a fim de compartilhar os questionamentos dirigidos, na verdade, a todos nós. O mestrando Fernando Braga da Costa se disfarçou, ou melhor, trabalhou como gari por oito meses e sentiu na pele o peso da invisibilidade pública, a qual ele suspeitava apenas teoricamente. Que maravilha de trabalho e iniciativa! Varrendo as ruas da USP, contou que foi ignorado por professores, amigos, colegas de curso, gente que há poucos instantes trocavam idéias com ele. Foi uma experiência que, imagino, o enriqueceu não apenas cientificamente, mas, sobretudo, na sua humanidade. Por exemplo, ele comentou: "descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência". Creio que ele aprendeu a olhar mais para o lado, ou talvez já o soubesse para ter escolhido um tema tão singular. Uma curiosidade interessante: esta informação me chegou de Belo Horizonte, cidade cujo nome fala muito de si, encaminhada por um primo amigo, que a recebeu de um estudante de direito, cego. E pensar que nem sempre se precisa de olhos para ver...

Nos espaços de blogs, há pessoas prestando atenção a outras, falando de como se sentem ou de como percebem o mundo, a cidade, a vida. Há os já indicados aí do ladinho, nos quais também existem referências a outros igualmente interessantes. Pessoas, falas, pensamentos, cada um quer deixar seu recado. Ao criar este espaço, meu único objetivo era dar vazão a uma vontade antiga de escrever. Escrever, escrever, escrever. Sem tanta programação nem roteiro certo, mas com um fim útil, ao menos, a mim mesma. Ao mundo da escrita só cabe sentir e deixá-lo ter vida própria. Talvez isto justifique um pouco porque me pego agora pensando o que eu queria mesmo dizer, quando comecei a escrever este texto. Perdi-me por entre as linhas, escorreguei nos meus questionamentos e acabei esquecendo o que queria mesmo falar. Vai ver que não queria dizer nada de tão especial assim, mas só falar dos dias, do ritmo da vida, do olhar e, quem sabe, agradecer aos que me sinalizam que devo olhar um pouco mais para o lado, sair da cegueira social, humana, pessoal. Oxalá eu consiga até o anoitecer. Tenho fé: chego lá.

Enquanto isso, fiquemos com um agradecimento também ao tempo, ao mês de setembro que me trouxe pessoas tão especiais para o meu coração, como o meu padrinho, como Francisco e uma criatura que vive me dizendo: "setembro é o mês mais bonito do ano". Apesar das controvérsias, hei de concordar: é um mês que floresce.