quarta-feira, 28 de julho de 2010

DOCKSIDE


Julho chega ao final com uma rapidez digna de fevereiro. Nem deu tempo de ver o Bem Amado, mas vi Plano B e lembrei que dificilmente tenho um. Até plano B é passível de falhas, pois a vida é cheia de surpresas. Lembrei que quando os pequenos desejos e sonhos não são realizados no tempo que queríamos, talvez tenhamos outra oportunidade de fazê-lo. Talvez, quem sabe.

Nem todo adolescente tem chiliques, rebeldias, exigências materiais. Os sonhos são comuns, desejos, anseios, perguntas mil. E eu, na época, apenas queria um dockside. Não era bem "apenas". Desejava muitas coisas, mas me via constantemente estacionando os olhos nos pés de uma das amigas e ficava lá imaginando como deveria ser confortável. O desconto do colégio, conseguido graças ao bom desempenho escolar, era fundamental para me deixar naquela escola, como também para me colocar os pés no chão, sem dockside mesmo, estava ótimo! O meu sapato era maravilhoso para correr até o ponto do ônibus. Pra que outro?

Pois bem, nesta altura da vida, sem ter que responder a tantos "pra quês", ontem adquiri o meu dockside. O vendedor riu com certo desdém, quando confessei ser meu sonho de adolescente. Eu nem sabia que ainda existia. O sonho não, o dockside. E como sonho só vale se for colorido, calcei algo assim vermelho e rosa e saí por aí. As sapatilhas usadas guardei na mesma embalagem do meu sonho e os coloquei nos pés. Foi quando percebi que quando calçamos mesmo os nossos sonhos, andamos seguramente mais confortáveis e, sem dúvida, é inevitável pular de alegria.


Magna Santos

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O LOUCO EMPOEIRADO

Costumava ler Gibran* como quem lê gibi, por diversão, até o dia em que parou no Louco. Viu-se nas ruas como o personagem a gritar e encontrar o sol sob os olhares perplexos da multidão. Viu-se como em uma miragem. Assustou-se! Jamais poderia dar-se ao inusitado, era contido demais, previsível demais. Nunca mais leu um livro sequer do poeta, nem O Profeta foi capaz de seduzi-lo. Nada.

Detestava surpresas e naquele dia, algo o angustiava. Os colegas de trabalho haviam prometido comemoração no seu aniversário. Logo ele que não era chegado a festas?! Deus do céu, nunca teve tanta vontade de faltar ao trabalho como naquele dia. Maldito aniversário que chegou. Poderia ter demorado um pouco mais. Pelo menos até se ambientar melhor no trabalho ao ponto de recusar qualquer convite sem perigo de ser classificado como esnobe. Agora estava sem saída. Teria de aceitar toda graça, qualquer cumprimento e festividade. Este era o preço por ter apenas 28 anos, estar numa terra estranha e vir ocupar a vaga cobiçada de alguém bem quisto.

O elevador demorava horrores, finalmente chegando para umas dez pessoas entrarem. Último andar não é brincadeira, demora outra eternidade. Passa pelo corredor numa rapidez invejável a qualquer esportista. Chega finalmente à sala, senta, suspira, fecha os olhos, antes de abri-los assustados com a primeira batida na porta. Outro suspiro, era apenas a servente que havia atrasado a limpeza diária. "Esse dia demorará a passar", pensa. Cuidou logo de pensar uma desculpa para o almoço. E para noite? Não terá como escapar, todos já sabem que ele vai direto para casa, não conhece ninguém ainda na cidade. Ele, que costumava ter uma resposta pronta nos momentos mais delicados da empresa, enrolava-se numa situação tão simples. É um homem precoce para trabalho, ascendendo muito cedo e rápido, graças a sua competência, dinamismo e senso de oportunidade, mas era devagar demais para o restante. Todos sabem de muita coisa sobre ele, desde que sua avó, em uma das viagens, resolveu aparecer de surpresa na empresa e conhecer, por conta própria, todos os seus colegas. Que vexame! Todos riram gostosamente com as histórias da velhinha moderna, enquanto ele disfarçava um sorriso amarelo com mil motivos para a avó se ausentar rapidamente.

Enquanto se perdia nas lembranças, o tempo passava. Já estava acostumado a fazer mil coisas ao mesmo tempo, sempre foi assim. Sua mãe não entendia como ele conseguia e o motivo disto, afinal, tudo sempre foi tão calmo, tão parado na sua casa. O tempo era abundante, mas o menino desde cedo estava lá, querendo ser centenas de gentes, revirando outros tantos para fazer do dia um dia produtivo.

Enfim, as horas foram passando, as pessoas entrando e saindo para resolver também mil problemas, expor outras tantas situações. Era um dia realmente daqueles. O almoço foi reduzido a um cafezinho e sem companhia. Aliás, que companhia? Nenhuma recordação, nenhum sussuro sobre a data, nada. Nenhum telefonema, nenhum email. Absolutamente nada. Cadê a comemoração prometida? Cadê os parabéns pra você? Cadê o dia? Acabou. O céu se pintou daquele rosa peculiar ao pôr do sol, mas, olhos fixos, observava apenas a pilha de papéis sobre a mesa. Voltou sozinho para casa, sem gritos, sem sussuros, sem velas, sem.

E o Louco empoeirado, esquecido na antiga estante.


Magna Santos

*Gibran foi veículo de muitas preciosidades. Parece ter vivido o que escreveu ou, seria o contrário, escreveu o que viveu. O fato é que por causa do seu compromisso, chegou a se prejudicar para não ser incoerente, conforme livro de sua amiga Bárbara Young(Gibran, esse homem do Líbano). Fica aqui um link para quem ainda não o conhece e tem curiosidade.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

PESADELO

Silêncio
Eles dormem
Todos dormem

A escuridão lá fora...
Rodas em movimento
Postes se acendem
Mostrando o caminho
Esquinas e mais esquinas
Vazias de gente

Todos dormem

O pesadelo espreita aqueles que roncam
Assustam-se com eles
Eles se assustam

Os sonhos não são lembrados
Esquecidos
Ficam no sono
Como se não sonhassem
Como se desaparecessem
Ao dormirem

Silêncio!
Preciso de sono
Ou de um carro
Para chegar a algum lugar
Para me deter em algum canto


Magna Santos

terça-feira, 13 de julho de 2010

DESPERTA-DOR

As águas me levaram junto com as telhas, portas, janelas, paredes da minha casa. Nem parece que passei anos para construir o que tenho, tinha. Restou o despertador maluco a me avisar da hora veloz. Acabou tudo num instante, o instante do aperreio, do desespero, das crianças desamparadas, perdidas, dos velhos sem resistência para nadar, para subir nos lugares mais altos. Uma avalanche de água inundou nosso mundo. Falam que a tv mostrou tudo. Duvido. Não havia ninguém aqui, além de nós. Pensei em falar, mas novamente o despertador tocou na hora do choro, fazendo-me lembrar do muito por fazer. Por onde começar? Como?

Minha mulher já não tem o mesmo olhar de antes, minha filha descoberta chora, quando acorda em meio a cacos e adormece ainda procurando a boneca Soninha, levada pela enxurrada. À noite, a escuridão é pior, o frio também. Velas chegam nos caminhões. Escrevem-se neles 'rapidão cometa' para nos acalmar.

Entre lama e pedras, restos de tudo. Sobrou nosso olhar, nosso silêncio.


Vítimas se avolumam em abrigos improvisados. Pernambuco e Alagoas sofrem com a destruição nas últimas enchentes. Quem tem a oportunidade de passar pelas cidades sofridas, fala que os jornais não são capazes de transmitir a dor das pessoas. Olhos perdidos é o que mais se vê. Fica aqui os acessos à Defesa Civil de Pernambuco e mais sobre Alagoas. Neles há muita informação, inclusive, as contas bancárias para doações seguras, no caso dos que estão distantes.


Magna Santos

quinta-feira, 8 de julho de 2010

LUDOVICO

Esqueceram a cacimba no lugar
Mudaram as cercas
Cavaram a estrada de sulcos compridos
Estreitaram
Colocaram tijolos na casa de taipa
O olho d'água chorou
Distribuíram meninos em casas distintas
Quebraram a porteira
Plantaram flamboyant

O jasmim continua lá

A cozinha abriu-se em outra porta
Fecharam a janela
Aumentaram o alpendre
Nasceram mais meninos
A luz chegou
O candeeiro apagou
As estrelas diminuíram
As velhas rezadeiras também

O jasmim continua lá

Alguns pés já não marcam o terreiro
Outros tantos já nasceram
Outros seguiram
Cresceram

E o jasmim continua lá

Continua como continua
As ripas da casa
Como continua a mesma pisada
De quem não vive sem um aperto de mão
Um abraço
Um aceno
Um choro entalado na garganta na hora da despedida.


Magna Santos

segunda-feira, 5 de julho de 2010

MUDA DE UM PÉ DE SERRA

Após retornar de viagem, mais uma muda me chegou, primeiro lida ao telefone, para depois me vir às mãos. A voz quase entalou ao escutá-la, mas era também aniversário do autor e urgia eu terminar os parabéns para depois pensar no choro. Mais uma vez, arrisco-me a publicá-la sem autorização, pois tenho aprendido que emoção boa deve ser compartilhada. Aqui está, então, um dos acontecimentos que muita felicidade me deu nos útimos dias: a comemoração dos setenta anos de minha mãe, cuja oportunidade reforçou a gratidão pelo meu avô(meu avohai) - velho lunduzento muito amado, pela minha avó - mão amorosa, cuja semente cheira a jasmim - enfim, por todos os seus rebentos.

A emoção foi tamanha que me calou os dedos, daí tomar emprestado os do meu irmão (dizem que é primo) para explicar meu silêncio. Como ele já me disse que Sementeiras é também minha sala de visita, tomo esta liberdade. Obrigada, cumpade. Talvez, nos próximos dias, eu publique algumas linhas que saíram a pulso sobre o Ludovico - meu pé de serra mais caro.


PRESENTE DE ANIVERSÁRIO

Festa de aniversario era confraternização, era uma celebração pelos frutos de uma semente saída da violência da Aurora, desbravou a Amazônia e os seus seringais, desceu rio abaixo numa canoa e descansou num chalé às margens do rio salgado, terminando por se firmar no solo fértil da antiga ilha dos macacos, que em homenagem a um aristocrata passou a ser Ludovico.

Festa, reunião de gente que se gosta, mesmo que às vezes esqueça disso, junta com coisas como o velho jasmim-laranja - irmão também - e aqueles bancos antigos de momentos tristes e alegres, cúmplices das nossas conversas. E o alpendre velho como sempre nos abrigando, nos abraçando com as suas lembranças de todos e de tudo. Não tínhamos alguns que poderiam responder “presente”, mas acho que sorriam chorando, assim como os seus.

Eita, meu querido, meu amado velho lunduzento, nem o conheci fisicamente, mas sinto a sua herança dentro do meu peito, o amor pelos nossos. E o apreço pela sua retidão moral, indiscutível caráter, afeito ao trabalho e ao cuidado com a família. Nunca o vi com os braços cruzados para trás, temperando a garganta com a fronte franzida, nos dias de destempero, mas até tal sabor provei sem conhecê-lo, pois o trago comigo.

Os seus rebentos já passaram dos sessenta, setenta e outros dos oitenta, mas continuam sendo o Ciço Camaleâo, o Oi de Cobra Morta, a Oi de Pitomba Lambida, a Galinha Carijó, o Quebra queixo, a Maria Pimenta, o Venta de Bezerro Novo, o Zé Coquin, o Malota, todos, embora distantes, por vezes, ao aproximarem-se demonstram todo amor que sempre os uniu, principalmente nas dificuldades. São todos crianças crescidas cercadas por suas proles.

Não tenho palavras para expressar a alegria de fazer parte desta saga, mas despertado pela iniciativa de dois brilhantes irmãos de berço e coração, sendo primos de sangue, sei da necessidade de celebrarmos sempre a nossa história, a nossa união, o nosso amor por nós mesmos. E deixarmos a carcaça da ignorância, as farpas dos conflitos e o egocentrismo de lado. É tempo de oxigenar as relações desses rebentos, para que possam envelhecer com o mesmo sentimento que cresceram.


Halano