segunda-feira, 30 de agosto de 2010

ONTEM

Ontem dei carona a dois, mas apenas uma ocupou o assento, o outro esperava na barriga a hora de chegar, depois apareceu nos meus sonhos como quem não quer nada e propôs intermináveis interpretações.

Ontem a Esperança me ofereceu água, eu recusei. Já estava idosa e não convém incomodar os mais velhos, melhor foi pegar sua bolsa no colo e deixá-la mesmo em pé para descansar. Ah, esperança esperança... Esperança tem filha, descobri. Ambas verificavam a saúde na mesma sala que eu.

Ontem foi o dia de ver um pijama para alguém que ainda não nasceu. Era verde, de cetim e seu brilho condizia com os olhos da mãe.

Ontem tentei medir um caixote para brinquedos, mas a fita métrica era incompreensível as minhas necessidades e desejos. Talvez um baú coubesse melhor, quem sabe uma grande caixa, mas o espaço me obrigou a pensar menor.

Ontem senti bobagens por causa da impaciência e, inevitavelmente, concluí: a água da Esperança me faltou.


Magna Santos

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

REPUBLICAÇÃO

Sementeiras nunca republicou nenhum escrito, mas hoje, quando completa dois anos de existência, em vez de coisas novas, gostaria de compartilhar um poema antigo que os leitores mais recentes talvez não tenham tido oportunidade de lê-lo e ao qual dedico especial carinho. Mantive a forma original, apesar do perfeccionismo me dar muita vontade de modificá-la. Na verdade, meu coração, depois que o escolheu, sofreu por outros que lhe são por demais preciosos, como é o caso de Super-herói de botas e tantos que falam dos meus amores mais caros, outros que retratam encontro com gente "desconhecida" numa Sala de espera ou as muitas palavras que saíram quase num suspiro ao ver as fotos do generoso Pachelly Jamacaru, como foi em A menina e o espelho da serra, lembrando-me também Quando as palavras salvam. Contudo Doce Teté teimou em permanecer e aqui fica, porque não tenho mais energia para resistir.

Teté foi uma pessoa que cuidou um pouco
da minha infância, a quem se poderia nomear de babá, mas não, eu a chamava simplesmente de Teté e ainda a chamo, apesar da distância e da minha ausência desleixada. Agradeço a Deus por tudo e a vocês o meu muitíssimo obrigada por todas as sementes, por toda a plantação partilhada até aqui. Muito em breve teremos escrito novo. Que Deus continue abençoando a todos!


DOCE TETÉ

Lembro do cheiro pela casa
Impregnando as paredes de taipa

O chão de barro batido
Parecia vestido de rica cerâmica
O café me chegava tão doce
Como eram doces os sentimentos teus
E eu dizia satisfeita:
“É o melhor café que alguém já me deu”.
Café
Que pendia no pé da porta da tua casa
Café
Pilava pilava...
Preto como tu
Para uma branca como eu.
Acho que tenho a alma preta, Teté
Acho que ela foi pintada por ti
Enquanto eu tomava café
Enquanto tomavas conta de mim

(E mamãe nem percebeu
Foste esperta: nem ela nem eu).

Hoje tenho a negritude
Que nem o candeeiro conseguia espantar
Tenho a escuridão
Que graças a tua mão eu conseguia acalmar
Negritude, Teté
Que um dia, sem sucesso, a lepra te quis roubar
Negritude sadia
Quente, leve, destemida
Assim como teu café
Forte, doce...do pé.
Deste ficou o sabor
Guardado na minha lembrança
E de ti, a minha crença
Que tenho com emoção
De que a tua negritude
Está passada e registrada
Pintada no meu coração.



Magna Santos
*Escrito em 10 de novembro de 2003.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

CAMPANHA POR BIBLIOTECAS VIVAS

_ Mãe, tô indo. Vou pra biblioteca.

Avisa o pequeno José, antes de sair de casa, uma entre centenas de residências que se aglomeram como uma espécie de quebra-cabeças da periferia. Tem sido assim a rotina de muitos dos que moram no Coque, contrariando o preconceito dos distantes.

Embora não participando do trabalho, sei que, há muito, os livros passeiam nas mãos de meninos, meninas, adolescentes, pessoas de todas as idades, mães que aprenderam a ler ali.
Cores, jeitos, cheiros de uma gente humilde que Chico Buarque e Vinícius de Moraes bem souberam cantar, mas que poucos de nós sabem sentir. Sim, é possível, mais que isto, é real. Realidade que combina com cada página vertida nos olhos curiosos e aguçados de uma moçada que, tempos atrás, não teria oportunidade da leitura, se não fosse pela força dos iguais que traduziram desejos em livros. Várias bibliotecas comunitárias foram criadas no Recife e região, unindo-se em uma rede organizada que abre agora sua segunda campanha, não mais para pedir livros, porém dinheiro para garantir a infra-estrutura dos prédios, os quais andam necessitando de recursos, serviços básicos, como um retelhamento na Biblioteca Popular do Coque, por exemplo. Além de dinheiro, equipamentos e propostas para trabalhos voluntários também são muito bem-vindos e necessários.

Assim, venho pedir aos poucos, embora caríssimos, leitores do Sementeiras que acorram a esta campanha e ajudem a manter esta gente boa aprendendo que a palavra Cidadania vale sempre a pena.

Para ajudar com dinheiro:
Caixa Econômica Federal
Agência: 2193

OP: 003

Conta corrente: 544-5


Para mais informações:

(81)3244-3325 / (81)8850-5507


Para conhecer mais:
Rede de Bibliotecas Comunitárias da Região Metropolitana do Recife
Biblioteca Popular do Coque
E para sentirem mais o trabalho, leiam as palavras poéticas de quem realmente participa e não de quem apenas sabe dele(como eu), escritas por Fabiana Coelho(Luna Freire) em Palavras-pontes, com destaque para 3 textos-poemas: Os Sonhos de Alexandre, Das Aprendizagens e O pequeno André.

Faltou dizer: para quem ainda não sabe,
a campanha é da Rede de Bibliotecas Comunitárias e congrega uma boa penca de blogs na tentativa de realmente atingir o máximo de pessoas. Sementeiras é só mais um nessa leva.

Que Deus abençoe a todos!



Magna Santos

domingo, 15 de agosto de 2010

"UMA NOITE EM 67"

A telona realmente nos presenteia com belezuras dignas de serem repassadas. E isto mais uma vez aconteceu quando me sentei naquelas cadeiras da Fundação Joaquim Nabuco, dias atrás. "Uma noite em 67" é o título de um documentário(de Ricardo Calil e Renato Terra), cujo propósito evolui à medida que vemos. Ponteio, Alegria Alegria, Roda Viva, Domingo no Parque...nos trazendo de volta tempos que a música brasileira era instrumento de resistência, de liberdade, de inclusão, de lucidez, de revolução. Tempos que a plateia era outro artista a mostrar suas criações, sua opiniões, talvez o único espaço onde a voz da maioria valia alguma coisa, uma coisa é certa: fazia barulho. No auge da ditadura militar a opressão marcava presença constante.

Já quase saindo de cartaz, pois já é a 3ª semana de exibição, alardiei onde pude, mas algumas linhas precisavam ser escritas, considerando a beleza do documentário. A película é primorosa. Poder recuperar imagens faz realmente um bem danado à humanidade, ao menos, à minha humanidade. Há momentos na história que não se pode apagar e ter registrado é mais que necessário. Senão, como avaliaríamos o temor de Gil, senão vendo-o antes de subir ao palco? Nem mesmo sabendo da bebedeira, nem escutando-o falar sobre o motivo nos daria a real dimensão do ocorrido. Como perceber o "abuso" de Chico Buarque para com o rótulo de mocinho(estrategicamente ansiado por quem organizava o festival e também pelos milicos)? Como avaliar o magnetismo de Caetano, senão o vendo domar uma multidão senhora da vaia, embora algumas palmas, de fato, víssemos competitivas? Como não desejar que Nara Leão, Elis tivessem dito alguma coisa? Como aprender a técnica para se livrar de um "linchamento": 'absurdo, absurdo'? Como não enxergar a emoção nos olhares de Edu Lobo e Marília Medalha? Como não refletir nas mudanças que a vida traz? Mudanças de opinião, de gestos, de posição, de lado, de escolhas políticas...Caetano e Gil que o digam (ou não). Sim, como não questionar, se questionar?

Deu vontade de ser bem mais velha para ter vivido aquele tempo, mas, na verdade, nem era nascida, talvez, quem sabe, desejada. E entre desejos e anseios, fiquemos com a conclusão inevitável de um jovem de 23 anos, que ainda hoje merece toda nossa admiração:
"Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração..."


Magna Santos

Cinema da Fundação Joaquim Nabuco

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

ESTRELA-GUIA

Vi um menino aprendendo a andar, pisoteando no ar em busca de equilíbrio. O pai lhe falava: "isto, filho, isto! Venha, meu menino, vamos". Mãos pequenas seguravam uma imensidão de alegria. Estava seguro. Na verdade, ali nem sabia o que era insegurança. Não aprendera ainda esta palavra, nem conhecera esta sensação, a não ser na hora do parto. Desde que sua mãe lhe segurou, pronto, o mundo havia voltado, se aquietado, posto fim aquilo tudo que ele não sabia nomear, mas que o expulsava de um lugar tão quentinho...

Estava ali agora, noutro lugar quente, seguro: as mãos do seu pai.

O gramado lhe convidava a correr, mas não podia ainda. Dois passos e buft. Às vezes, até achava engraçado quando caía, mas os olhos maternos aumentavam tanto de tamanho que ele intuía ser algo perigoso. E o pai: "levanta, filho, vem cá!". Então ía cheio de vontade.


O sol lhe aquecia a pequena cabeça. As mãos lhe seguiam também os passos e os pés lhe pareciam tão preciosos que, vez ou outra, tinha a vontade de retomá-los na boca. "Pare com isso, meu filho!".

Brincadeiras na tarde inteira - ele e o pai - fizeram o relógio correr e o mesmo sol deitou-se para dormir, colorindo diferente o céu, antes tão azul. Que mundo grande este! Enorme! Terra de gigantes!

E o pai a lhe rodear os passos, aproveitou para lhe mostrar a primeira estrela. E ele, menino, a enxergar duas estrelas bem grandes...nos olhos do pai.


Magna Santos

sábado, 7 de agosto de 2010

ANTES QUE CHEGUE DOMINGO

Antes que chegue domingo, eu queria te dizer que aquela dor passou. Não tenho mais raiva de ti, não acordo mais chorando por não conseguir te ver, nem forço a mente para recordar os detalhes do teu rosto.

Não lamento mais teus cabelos não terem branqueado, nem tuas mãos, enrugado. Não. Algumas rugas já começam a me aparecer, dizendo-me que é bom, mas nem sempre necessário.

Sim, pai, estou aqui. Me acostumei a dormir sabendo da tua existência.

Antes que chegue domingo, quero te dizer que sempre te espero, mas não no presente. Te espero no futuro, quando meus pés tiverem caminhado o suficiente e os teus puderem voltar. Te espero no futuro, quando minhas mãos virarem vento e tiverem calos de uma plantação, espero, produtiva.

Te espero naquele dia que um dia há de vir. E, mesmo que não seja um domingo, te abraçarei com amor ao te ver ao meu encontro. E minha cabeça branca sorrirá, quando vir, surpreendentemente, que a tua também branqueou.


Magna Santos