domingo, 24 de outubro de 2010

SARAU NA BIBLIOTECA POPULAR DO COQUE

Conheci a menina-ponte no último dia 22. Ela chegou acompanhada de amigos e mostrou o caminho, onde iríamos encontrar poesia, gente e sorrisos. À entrada da rua, foi saudada como só as crianças o fariam. "Tia, tia, tia!" Abraços e mais abraços dá pra conter a euforia e contagiar os reles acompanhantes que, de tão aéreos, não conseguiam atinar para a profundidade da rua. Namorados se abraçavam na calçada, outros conversavam, mas a calçada ali resgatava o significado perdido em muitos lugares: encontro.

A fachada da biblioteca é só cores e figuras felizes de um azul que não está longe do céu. À entrada, as poesias batem nos nossos narizes, dependuradas pelo telhado como se fossem as próprias goteiras congeladas, só que, dessa vez, sortiam de beleza o espaço todo criado pelas crianças. Muitas queriam mostrar a sua:

_ Ler esta!
_ Aquela é dela.
_ Acho linda esta.

E assim fomos respirando, respirando...
Sem fôlego, fui suspendida do chão por uma pequenina vivaz. Outro chegou por trás para ajudar a amiga. Ambos tentavam me levantar, como se, de fato, eu já não estivesse nos ares. Alegria, em forma de pulos, era necessário para também mostrar as fotos aos visitantes:

_ Olha eu ali!
_ Onde?
_ Ali, ó!

Sim, ela estava ali e ali e ali. E eu não sabia em que lugar ficar, visto que queria estar em todos.

Chegando a hora do sarau, vimos meninos se apertarem para ouvir o que os adultos nem sempre estão dispostos, mas que uma caixa de som bem que encurta o espaço, quando se quer.

Em plena rua, Zé de Guedes nos presenteou várias vezes com seus poemas visuais, sonoros e contundentes. Fez sucesso com sua simpatia, seu "urubu-rei", contagiando todos nós e sendo também surpreendido pelo acolhimento espontâneo e festivo dos pequenos. Fabiana Coelho - a menina-ponte - com seus arquivos poéticos, declamou outros tantos e os meninos...ah, os meninos...

_ Tia, tia, me dá uma poesia, tia!

Como não se emocionar com tamanho pedido? Como não pensar que o mundo, onde crianças pedem poesia só pode crescer e crescer bem? Que explodam todas as teorias pessimistas, todas as visões preconceituosas, todas as manchetes estigmatizantes. Betânia, que persevera naquela biblioteca com o coração mole e os pulsos firmes, nos informou das crianças como quem falava dos próprios filhos. Sim, filhos às vezes dão aperreio, às vezes preocupam, mas acreditá-los é fundamental. E ela acredita.

Tive a honra de "declamar" ("Fabiana, eu não sei declamar") um dos poemas com um menino esperto, de olhos atentos, de mãos apressadas e de voz inquieta. Tales e eu abraçados permanecemos enquanto perguntávamos o que era poesia aos demais. E agora vai uma resposta possível:

Poesia é ver Drummond e outros mestres repousarem em estantes da periferia
É encontrar pessoas, cuja crença num mundo melhor faz parte da prática
Poesia é sentar na calçada, escutando canções, histórias, poemas e tantas risadas
É receber um abraço e uma declaração de uma menina recém conhecida: "eu gosto de você"
Poesia é ser alçada por uma criança de 3 anos em plena biblioteca.

Sim, Ester, eu também gosto de você e meus pés ainda estão fora do chão.

Para Fabiana Coelho, Betânia e todos os meninos do Coque.


Magna Santos

domingo, 17 de outubro de 2010

CORES

Adormeci nos meus próprios calos
Fiz deles travesseiros

Empoeirados

Escutei uma cantiga de ninar que não existia

Delírio, talvez


Acordei à tardinha

...

Ilusão


Não tenho nada mais a dizer

A não ser sobre as cores do sol poente

Novas considerações

Algumas dolorosas

Penosas

Outras viçosas...

Todas reais


Antes a realidade

Que o céu pintado a mão

Prefiro as tempestades

À bonança comprada

A peso de ouro


Prefiro a chuva fria

Ao abrigo que acorrenta.


Magna Santos

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

VAI PASSAR

O medo agora tem cor, cheiro e endereço. Deixou de ser algo inodoro, invisível. O monstro subiu do porão e começa a arranhar a porta, querendo entrar. Conheço o seu jeito não é de hoje e mamãe teima em me dizer: "vai passar, filha, vai passar". Será?

Sei não...das outras vezes que arrombou minha porta, fez um estrago daqueles. Pintado de azul e amarelo, com um grande bico e a fome maior ainda, manteve-se aqui por exatos oito anos, entregando tudo o que eu tinha aos transeuntes. Vi aos poucos minha casa esvaziada. Perdi o viço e, desde esse tempo, tomei horror a ele, eu que já temor o tinha. Lutei, com todas as forças das minhas mãos pequeninas, para expulsá-lo de dentro, mas inútil. Ele entrou e tomou gosto pelo meu cantinho.

Agora está querendo voltar, após oito anos tentando me recuperar. Decerto, minha casa ainda não está como quero, falta muita coisa...mas, logo agora? Logo agora, quando minhas mãos já sabem plantar coisas melhores, já ensaiam algumas notas musicais. Logo agora que minha casa permanece mais serena, que meus vizinhos me respeitam mais. Logo agora que pensava em enfeitar o jardim... Logo agora?

Mamãe continua me dizendo: "vai passar, filha, vai passar". E aí me lembro, em flashes, de uma lenda antiga, contada na hora de dormir. Falava que, certo dia, o rei lançou um desafio: quem seria capaz de criar uma frase apropriada para ler na hora da tristeza, como também no instante da alegria? Muitos foram as tentativas de todos os plebeus, contudo a única que calou o rei foi exatamente esta: vai passar.

Assim, seja qual for o resultado dessas minhas noites aterrorizantes, seja qual for a força do monstro com suas unhas perseverantes, terei como escudo, de fato, o ninar de minha velha mãe: "vai passar". Por ora, asseguro: minhas pequenas mãos continuam tateando o trinco da porta e fechando e fechando e fechando...


Magna Santos

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

NERD

Quando se passa muito tempo no computador, os olhos são a primeira coisa que incomoda: ressecam-se, ardem e a vontade de fechá-los chega ligeiro.

Quando se passa muito tempo no computador, a cabeça cansa, os neurônios não sossegam. Ou sossegam demais?


Quando se passa muito tempo no computador, perde-se aquela companhia, aquele programa ou aquele papo com a mãe, que sozinha assiste aos últimos capítulos da novela. Que novela?

Quando se passa muito tempo no computador, corre-se o risco de pegar vírus. Sim, a corisa chega, a moleza também. Uma gripe simples, mas chata.


Quando se passa muito tempo no computador, toda palavra é lida com um peso fora do comum, uma atenção ligeiramente digna de uma lei, uma esperança exageradamente tenaz.


Sim, quando se passa muito tempo no computador, esquece-se daquele criado-mudo que deita o livro já há alguns dias.


Quando passa muito tempo, a comida azeda, o leite corta, o rango esfria. O amor esquece. A saudade chega. A noite vem. O dia custa chegar.



Magna Santos