Teve algumas frustrações na vida, mas as primeiras contáveis foram marcantes, as incontáveis também, claro. Aos cinco anos, já sabia o que era seca ao fitar os olhares fatigados dos familiares, mas agarrada à chupeta pensava: "como existe alguém capaz de viver sem um consolo*, meu Deus!". Para ela, era algo inimaginável. Como era também surreal, uma menina, num pé de serra, sonhar com aulas de piano e de balé. Pois bem, o primeiro foi mais fácil de realizar e toda semana estava lá: chupeta à boca, dedinhos embalados pelos exercícios da professora. Entrar naquela casa já era uma festa: sua arquitetura moderna, seus corredores enormes, a escada em curva, lembrava um castelo. Sua professora, então, era uma doce criatura, fazendo-lhe acreditar que era possível ser uma boa pianista. E ela ía às aulas, igual Branca de Neve, cantarolando. Mas, eis que a cumplicidade de uma mãe e uma professora mudaria algo. Um belo dia, ao sorrir e mostrar à professora o dente mole que tanto sua mãe teimava em arrancar, este foi retirado sem dó nem piedade e não houve jeito de fazê-la voltar às aulas, nunca mais. Nunca mais também retornou a chupeta à boca. Ficou sem consolo, sem dente e sem vontade alguma de tocar piano.
Retirada da sua terra, anos mais tarde, retomou o sonho de bailarina, quando foi matriculada em uma pequena escola de balé. As aulas lhe davam outro gás, chegava em casa, ensinando todos os passos a quem quisesse aprender. Porém as aulas lhe tiravam alguma força física, porque, sem exceção, cada dia de aula correspondia a uma queda, uma cicatriz. Ninguém entendia, muito menos ela. E, ao final de um mês, a zelosa mãe perguntou preocupada à professora se a filha levava jeito pra coisa. Eis a resposta fatídica que colocaria uma pá de terra sobre seu sonho de bailarina: "ela é muito esforçada". Mãe sertaneja, sofrida, viúva, sacrifício para subsistência, filha no balé? Só se fosse com muito talento e sem nenhum acidente. Esforço ela teria que ter de sobra para outras tarefas da vida.
Hoje leva a vida, acurando sua escuta para os sonhos e medos alheios. Segue vivendo, diverte-se com a vida. Entre uma nota e outra, um passo e outro, adora contar histórias, sobretudo, hilariantes, fictícias ou não, como esta.
Magna Santos
*consolo=chupeta, na região do cariri cearense