sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O TESOURO (2ª Parte - Final)

José voltou mais cedo para casa. A fome e a vontade de chegar o encontraram antes da hora. Nem atinou para a ausência dos meninos, lembrava apenas de cada palavra do pai, de cada gesto, de cada atitude. Aquele papel amarelado de alguma forma tinha mexido com ele. Não tinha dúvidas, era a caligrafia do pai, os antigos papéis onde seu velho ensaiava mapas, certamente, aquele era mais um dentre os muitos mapas que ele explorou, quando criança. Uma saudade danada lhe apertava o peito, parecia que tinha ficado algo para se dizer...e tinha mesmo. Sua ida a São Paulo, há 18 anos atrás, havia contrariado demais seu pai, o qual nunca mais pôde rever.

"_Meu filho, broto retirado do seu chão, morre solitário. Repare o mandacaru, é seco, mas dá flor". Foi o que o pai lhe disse na despedida.

Lutou por alguns anos e, de última hora, largou tudo e voltou, após receber um telegrama, comunicando o falecimento do seu velho. Lembrou-se do que pensou na viagem de retorno: nunca mais conversas na madrugada, nunca mais ouviria histórias assombradas, nunca mais visitas ao umbuzeiro. Nunca mais. Era mais do que uma constatação da verdade, era uma condenação, uma promessa para si mesmo: nunca mais com ninguém.

Os dias se passaram, os anos correram, dando-lhe mulher, filhos e o mesmo teto para morar; não tinha mais coragem também de arredar o pé daquele terreno, por mais duro que lhe fosse a vida. Às vezes ficava pensativo e a mulher já o entendia, era hora de tirar os meninos de perto, porque o marido estava longe. Nestas horas, ele voltava a ser criança e se via brincando com o pai. Apesar de acostumado a lida rude, seu pai era sábio o suficiente para brincar com os filhos, inventar mil e uma brincadeiras. Com José, adorava criar uma caça ao tesouro, porque gostava de observar a vivacidade e a alegria do filho; ir ao umbuzeiro, então, era como ir ao paraíso, melhor, era como ir a um templo, onde tudo era sagrado, tudo que se dissesse, que se fizesse.

Destes momentos de lembranças, José acabava acordando com um dos meninos a lhe perguntar por algo e via então que ele ali era o pai. E agora, enquanto sonhava, algo parecia faltar: as crianças. Onde estavam? Neste exato instante, surgiram os dois em disparada na porteira. Pareciam exaustos. Ainda quis reclamar, chamar a atenção, mas não conseguiu, estava claro o medo dos dois e o cansaço excessivo, talvez até pelo medo. Resolveu então perguntar o que aconteceu:

_ Não me escondam nada. Quero saber onde foram.

João, sem palavras dizer, depositou-lhe nas mãos a caixinha e o mapa sujo de suor e de terra. José reconheceria o embrulho do seu pai em qualquer lugar que estivesse...sempre as mesmas voltas no barbante, sempre o mesmo nó cego. Tremeu. Pensava que havia descoberto todos os tesouros e aquele estava lá, nas suas mãos. Ficou meio hipnotisado até ser despertado por Netinho:

_ Abre, pai, abre!

E José sacudiu a terra da caixa e pegou o canivete para libertá-la do sofrido barbante. Abriu. Os olhos dos meninos brilhavam, os dele, marejavam. Era a última foto tirada com o pai, ambos sorrindo abraçados, dias antes da sua viagem. No verso, a dedicatória em letras quase apagadas: "Tesouro se guarda no coração. Eu estava errado, meu filho, broto vive bem onde for bem cultivado. Do seu velho e amigo pai". Entre lágrimas entendeu e uma paz, há tempos desaparecida, finalmente retornou. Fitou os dois pequenos ansiosos por alguma reação sua...pegou-lhes as mãos com gratidão e, após um demorado abraço, suspirou profundamente.

Daquele dia em diante, ele jamais falaria 'nunca mais'.


Magna Santos

domingo, 22 de novembro de 2009

O TESOURO (1ª Parte)

_ Vamos, João, vamos!
_ Já disse que só vou quando acabar de fazer o que pai me mandou.
_ Mas, João...
_ Depois pai briga comigo, e aí?
_ Mas, João...
_ Tá bom, tá bom.

Pegaram a baladeira, a pá, o mapa e saíram ao encontro do desconhecido. Foram de mapa em punhos, pois o tesouro teria que ser encontrado até o meio-dia, hora em que o pai chegaria em casa e descobriria a trela. Iguais cinderelos às avessas, foram com coragem e determinação. Fazia dias, encontraram aquele mapa nos guardados do pai:

_Pai, o que é isto? O pai empalideceu, avermelhou os olhos, quando fitou aquele papel amarelado pelo tempo e disse:
_Besteira.
_Besteira, pai? Mas tá aqui dizendo que é um mapa de tesouro!
_Besteira, menino - sentenciou e saiu, evitando explicações, sem perceber o brilho nos olhos dos filhos. Homem feito, precisava fugir daquela lembrança.

Agora os dois pequenos estavam ali, dispostos a descobrir o que o pai não ousou observar. Abriram a porteira, passaram pela cerca de arame do sítio vizinho, atravessaram a seca plantação de Chico de Dida, chegaram na cacimba de dona Filó, que de longe acenou. Mais cercas, mais arames, uma corrida do mangangá, que não brinca em serviço. Desembocaram no açude teimoso, onde deveriam dar uma volta enorme até a famosa pedra furada. Os irmãos morriam de medo do lugar, pois a fama era de ser um antigo cemitério de índios. O pai contava que, à noite, as almas vinham reclamar rezas e cantorias para quem andasse pelo lugar sem parar. Ele mesmo - o pai - já havia passado por maus bocados, quando criança. Costumava ir com seu pai ao umbuzeiro, sendo a pedra furada passagem obrigatória; na única vez que foi sozinho, arrependeu-se amargamente e nunca mais tentou. Assim, por precaução, eles parariam e rezariam um Pai Nosso por todos dali. De lá, segundo o mapa, estariam em condições de ver o antigo umbuzeiro.

O sol subia à medida em que caminhavam. João lembrou-se do pai:
_ Ligeiro, Netinho, ligeiro!
E Netinho se esforçava para acompanhar o irmão.

Chegaram finalmente ao umbuzeiro. Já haviam ido lá, claro, mas sozinhos...tudo parecia diferente. Agora começavam a entender porque sempre diziam que os umbuzeiros eram sagrados, eles pareciam ter raízes embaixo e em cima de tão bonitos. E por falar em raízes, lembraram-se do mapa. Olharam-no, examinaram a árvore e se acharam perdidos. Afinal, onde estava o segundo nó? A raiz indicada no mapa estava abaixo do segundo nó. Bom, resolveram arriscar e cavaram, cavaram ávidos de esperança. Quando o sol anunciava o meio-dia, encontraram uma caixa pequena amarrada com um barbante cru, porém não conseguiram de nenhum modo desatá-lo da caixa. O jeito era voltar com a caixa para casa, até porque agora não poderiam mais esconder o ocorrido, já era meio-dia.

Desabalaram ambos numa carreira sem fim. Netinho não ousava reclamar das dores nas pernas, mais dor seria encontrar o pai em casa antes deles. E correram, correram, fizeram todo o trajeto de volta sem olharem para trás.


Magna Santos

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

BUSCA

Sim, ele estava nu ao amanhecer
Rasgou-se das sedas que vestia seu corpo
E quase como louco
Estava a vagar.
Onde estava a lua que refletia o dia na escuridão?
Onde estava a estrela que pairava no ar?
Onde estava?
Neste momento ele olhou para si
E surpreso percebeu...
Seus pés tinham raízes
Seus braços eram de sol
...
Então ele chorou
E sorriu.


Magna Santos

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

14 ANOS

Fiquei lembrando dos meus 14 anos e não atinei para o que tinha sido, apenas lembrei que, naquele ano em pleno "1º científico" me sobrava muita preocupação e pouca alegria, na verdade me sobrava muita confusão no juízo.

Hoje vendo ele, nasce uma alegria redobrada, quadruplicada...ah, nem sei o tanto! Crescer com saúde é algo bonito de se ver. Muitas vezes se cresce igual planta abafada longe do sol. Acaba se espichando tanto que sempre fica alguma anomalia para ser resolvida depois, quando se resolve. Mas crescer, crescer mesmo é bem difícil.

Reuniões embaixo do cajueiro desta vez não foram muitas. Há que se dar atenção aos amigos que preferiam um lugar mais fechado. Não existiam paredes que retivessem as gargalhadas, os cochichos, as tramas arquitetadas em plena tarde pra noite que se aproximava. Também não demorou o medo bater pernas e sobrar coragem para se pegar rã em nome da farra. Desta vez não ouvi: "faz uma vistoria no banheiro, madrinha". Quanta coragem! Quanta vontade também de mostrar tudo de uma vez. Empinar pipa ficou mesmo para o pai e a madrinha abestalhada, que teimam em ser crianças no meio de adolescentes. Uma delícia a convivência, um banquete para a alma faminta.

Volto de um feriadão com gosto de quero mais. Talvez não tenha sido suficiente para me alimentar depois de dias doloridos por sofrimentos alheios. Mas, certamente, deu-me uma "sustança" das boas. Sobrou ainda um monte de brincadeiras a se fazer. Sobraram histórias a se contar, já agendadas pra próxima. O retorno de viagem não teve no que se pensar, a não ser em mais maneiras de se inventar um passatempo.

E o que vale mesmo é que nesse passar do tempo, vez ou outra nos surpreendemos com tudo o que se viveu, como se tudo o que se viveu fosse apenas do outro e não nosso. Mesmo assistindo ao outro crescer, mesmo sendo os hormônios do outro que fazem as pernas crescerem e dar passos mais largos, o crescimento é conjunto. Já falei aqui dos seus 13 anos, mas este agora é apenas para dizer a ti, filho do coração, sobrinho e afilhado muito amado: estou gostando demais do tamanho que tu estás ficando, sobretudo, por não fechares os olhos para quem não é tão alto. Cresça, meu filho, estarei sempre aqui...por perto.

Que Deus te ensine sempre a cultivar a alegria e a humildade!


Magna Santos

terça-feira, 3 de novembro de 2009

OLHOS ABERTOS

O nunca terminou num suspiro. Desfez as malas já em novo território. Aqueceu as arestas para sorrir melhor. Não esgotou as fontes do inverno, pois é sempre bom tê-las em dia para renovar o aquecimento. Também descolou três cestas para sorti-las de coisas. Uma para o dia, outra para a noite, outra maior ainda para a madrugada. Amanheceria límpida, igual ao lago que molha as crianças. Venderia sorrisos a preços banais: um por duas piscadas, três por quatro abraços. Não sobraria um, pois seu coração estava generoso. Bolsos cheios, voltaria com mais e mais e mais...até nutrir a humanidade inteira.

E assim foi.

Até acordar com um beijo de criança e perceber que poderia ser ainda melhor.


Magna Santos