José voltou mais cedo para casa. A fome e a vontade de chegar o encontraram antes da hora. Nem atinou para a ausência dos meninos, lembrava apenas de cada palavra do pai, de cada gesto, de cada atitude. Aquele papel amarelado de alguma forma tinha mexido com ele. Não tinha dúvidas, era a caligrafia do pai, os antigos papéis onde seu velho ensaiava mapas, certamente, aquele era mais um dentre os muitos mapas que ele explorou, quando criança. Uma saudade danada lhe apertava o peito, parecia que tinha ficado algo para se dizer...e tinha mesmo. Sua ida a São Paulo, há 18 anos atrás, havia contrariado demais seu pai, o qual nunca mais pôde rever.
"_Meu filho, broto retirado do seu chão, morre solitário. Repare o mandacaru, é seco, mas dá flor". Foi o que o pai lhe disse na despedida.
Lutou por alguns anos e, de última hora, largou tudo e voltou, após receber um telegrama, comunicando o falecimento do seu velho. Lembrou-se do que pensou na viagem de retorno: nunca mais conversas na madrugada, nunca mais ouviria histórias assombradas, nunca mais visitas ao umbuzeiro. Nunca mais. Era mais do que uma constatação da verdade, era uma condenação, uma promessa para si mesmo: nunca mais com ninguém.
Os dias se passaram, os anos correram, dando-lhe mulher, filhos e o mesmo teto para morar; não tinha mais coragem também de arredar o pé daquele terreno, por mais duro que lhe fosse a vida. Às vezes ficava pensativo e a mulher já o entendia, era hora de tirar os meninos de perto, porque o marido estava longe. Nestas horas, ele voltava a ser criança e se via brincando com o pai. Apesar de acostumado a lida rude, seu pai era sábio o suficiente para brincar com os filhos, inventar mil e uma brincadeiras. Com José, adorava criar uma caça ao tesouro, porque gostava de observar a vivacidade e a alegria do filho; ir ao umbuzeiro, então, era como ir ao paraíso, melhor, era como ir a um templo, onde tudo era sagrado, tudo que se dissesse, que se fizesse.
Destes momentos de lembranças, José acabava acordando com um dos meninos a lhe perguntar por algo e via então que ele ali era o pai. E agora, enquanto sonhava, algo parecia faltar: as crianças. Onde estavam? Neste exato instante, surgiram os dois em disparada na porteira. Pareciam exaustos. Ainda quis reclamar, chamar a atenção, mas não conseguiu, estava claro o medo dos dois e o cansaço excessivo, talvez até pelo medo. Resolveu então perguntar o que aconteceu:
_ Não me escondam nada. Quero saber onde foram.
João, sem palavras dizer, depositou-lhe nas mãos a caixinha e o mapa sujo de suor e de terra. José reconheceria o embrulho do seu pai em qualquer lugar que estivesse...sempre as mesmas voltas no barbante, sempre o mesmo nó cego. Tremeu. Pensava que havia descoberto todos os tesouros e aquele estava lá, nas suas mãos. Ficou meio hipnotisado até ser despertado por Netinho:
_ Abre, pai, abre!
E José sacudiu a terra da caixa e pegou o canivete para libertá-la do sofrido barbante. Abriu. Os olhos dos meninos brilhavam, os dele, marejavam. Era a última foto tirada com o pai, ambos sorrindo abraçados, dias antes da sua viagem. No verso, a dedicatória em letras quase apagadas: "Tesouro se guarda no coração. Eu estava errado, meu filho, broto vive bem onde for bem cultivado. Do seu velho e amigo pai". Entre lágrimas entendeu e uma paz, há tempos desaparecida, finalmente retornou. Fitou os dois pequenos ansiosos por alguma reação sua...pegou-lhes as mãos com gratidão e, após um demorado abraço, suspirou profundamente.
Daquele dia em diante, ele jamais falaria 'nunca mais'.
Magna Santos
3 comentários:
O tempo é capaz de nos surpreender com essas felicidades clandestinas, com esse sabor parecido esquecido...
O conto me deu saudades dessa sensação, desse reviver da alma.
Quero que meus tesouros sejam impregnados dessa riqueza escancaradamente sublime.
Abraços.
A vida aparece com cada uma... Dizem que o passado está morto, mas o que é o presente, senão fruto dele?
Linda história, Magna! Beijo!
Lindo Magna. Um tesouro...
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