segunda-feira, 30 de agosto de 2010

ONTEM

Ontem dei carona a dois, mas apenas uma ocupou o assento, o outro esperava na barriga a hora de chegar, depois apareceu nos meus sonhos como quem não quer nada e propôs intermináveis interpretações.

Ontem a Esperança me ofereceu água, eu recusei. Já estava idosa e não convém incomodar os mais velhos, melhor foi pegar sua bolsa no colo e deixá-la mesmo em pé para descansar. Ah, esperança esperança... Esperança tem filha, descobri. Ambas verificavam a saúde na mesma sala que eu.

Ontem foi o dia de ver um pijama para alguém que ainda não nasceu. Era verde, de cetim e seu brilho condizia com os olhos da mãe.

Ontem tentei medir um caixote para brinquedos, mas a fita métrica era incompreensível as minhas necessidades e desejos. Talvez um baú coubesse melhor, quem sabe uma grande caixa, mas o espaço me obrigou a pensar menor.

Ontem senti bobagens por causa da impaciência e, inevitavelmente, concluí: a água da Esperança me faltou.


Magna Santos

5 comentários:

Arsenio disse...

Gostei, Magna. Poema em prosa, mas poema. Uma angústia perceptível (o própria tema contem uma alta dose de desalento) e numa clareza de expressão bacana.

É o sentimento da perda. No meu entender, e disso que trata bonito poema: a perda, cujo objeto é associado à leveza ou à própria existência, confronta-se com um presente vazio, pesado, despoetizado.

Há um poema primoroso, chamado Janeiro, de Uum poeta baiano, chamado Ruy Espinheira Filho, que transcrevo aqui no blog, com um beijo fraternal pra você:

"JANEIRO

Janeiro descia com as chuvas e inventava besouros

e borboletas e pássaros e girinos e
caminhávamos descalços no barro
e lá estavam as lavadeiras com suas coxas
morenas e fortes como a água
e que todas as noites me assombravam
calidamente.

Janeiro soprava um vento de primeiro instante de tudo
e o que respirávamos se chamava amanhã
e foi
o que eu quis te ofertar porque eras tão bela.

Mas que isso aconteceu depois. Depois como agora.
E é para sempre
para nunca mais
este exílio."

Magna Santos disse...

Arsênio, encontro-me em plena hora do almoço, esperando retomar a labuta. O barulho da chuva parece atender ao meu pedido de paciência, de calma. Entro no email e me deparo com este poema tão bonito que deixaste aqui para todos nós. Benditos os poetas! Aí lembro que nasci dia 6 de janeiro, lembro de Deus e de que Ele é mesmo um Grande Poeta. Já tentei escrever sobre Ele, mas impossível. Está sempre aquém. Como falar de quem criou com maestria e intensa beleza? De quem teve a linda ideia de pôr asas em pássaros e diferenças em gente?
Assim, fico com a pieguice 'justa' dos materialistas. Que ela se achegue aos meus braços para retê-la com força, porque no dia em que eu deixar de escrever o que sinto ou esquecer do meu Pai é melhor que os dedos se calem.
Desculpe pela emoção, particularmente hoje estou emotiva demais.
Deixo-lhe um beijo de irmã e uma de Quintana:

SE EU FOSSE UM PADRE

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!

Arsenio disse...

Quintana é Quintana, né não Magna? Obrigado pelo afeto e pela oferta quintaniana, que não se encerram nestes posts, pois é um afeto de lirismo fraternal. Obrigado. Um grande Beijo e abraço pra você

Marina disse...

Impaciência ou pressa. Ambas atrapalham a ordem natural da vida. Ambas devem desacelerar para que possamos contemplar os detalhes. Os belos detalhes, como aqueles presentes na delicadeza das suas palavras.

Lindo, Magna. Beijos.

Dois Rios disse...

Magna querida!

O teu escrito é de uma ampla e delicada beleza.

Poesia? Prosa? Na verdade não sei. Desse vasto e fértil terreno só entendo mesmo é de gostar. E como eu gostei!

As tuas palavras têm o dom da leveza. Ainda que as vezes tristes, elas sempre flutuam no nosso imaginário.

Beijo,
Inês