quarta-feira, 6 de maio de 2009

A FUGA

O menino queria fugir. Preparou a bolsa com seus pertences favoritos, ou diria, seu tesouro: um pião, 10 bolas de gude, 5 chicletes, o último gibi. A mãe assistia a tudo em meio a cálculos de contas a vencer em poucos dias. No entanto, observando a movimentação do pequeno, deixou de lado calculadora, papéis e preocupações financeiras; eles podiam esperar.

_ Queres ir aonde, Serginho?

_ Para longe.

_ Onde? insistiu

_ Naquele lugar que é depois daquela curva.

_ Pois bem, meu filho, mas você está esquecendo duas coisas.

_ O que, mãe?

_ Primeiro nossa foto. Não se pode ir embora sem fotos. Depois, precisa lanchar para seguir viagem.

O menino concordou sem demora. Escalou a primeira prateleira da estante e retirou a foto: ele, o pai, a mãe e dindin, seu cachorro. Depois olhou-a demoradamente, guardou na mochila e sentou-se à mesa, esperando algo para comer.

A mãe fez um ritual inusitado na cozinha: ligou o som em uma música bem divertida, buscou apetrechos e começou a rebolar manipulando os ingredientes. O menino também assistia a tudo, tentando apenas observar, mas aos poucos começou a batucar com os dedos. Dindin parecia entender tudo, com seu rabo ministrando euforia. A mãe, ao som da batucada, ía cada vez mais misturando: sabor e ritmo, enquanto o filho mesclava som, sorriso, fome e alegria em porções generosas.

Fartaram-se ao pôr do sol até que Serginho pareceu lembrar-se de algo. Guardou as bolas de gude e o pião. Nada mais de chicletes, ele e a mãe mascaram todos. De mãos dadas com ela, seguiu para o quarto a fim de escutar o gibi antes de dormir.

A fuga? Ah, ela poderia esperar para depois...e de novo.


Magna Santos

10 comentários:

Marina disse...

Ninguém resiste ao amor de mãe.

Engraçado como esse menino tinha a cara do meu irmão mais novo, na cena da minha imaginação. Não que ele tenha tentado fugir, algum dia. Vai entender!

Beijos, linda!

Gaby Lirie disse...

Ah a mãe !!!

Lindo texto adorei !!!

Grande beijo.

Hérlon Fernandes disse...

Como fugir e deixar o maior tesouro em casa? Mães são anjos que Deus nos outorga a graça de viver entre nós por um inesquecível tempo!
Lindo texto, como de costume!
Abraços.

tainah disse...

Que boa surpresa você ter aperecido, Magna, e de quebra me apresentado as "sementeiras". Foi bom saber da quase fuga do Serginho.

Abraço!

Magui disse...

A atitude da mãe foi sábia ante o surto, comum, da idade.Belo e articulado texto.

tesco disse...

Seria bom se sempre fosse assim, compreensão e amor. O que muitos 'Serginhos' têm dss mães ao saberem de sua intenção de fugir de casa, são as frases "Deixa teu pai saber disso" ou "Tá precisando é duma surra". Infelizmente, muitas mães não sabem contornar as situações adversas que se apresentam, adotando o comportamento padrão da sociedade. Que, por enquanto, ainda está se pautando pela violência e intolerância. _Beijos.

Marcelo disse...

Quando criança a idéia de fugir me agradava muito.
Mas tive uma idéia melhor, eu criei um mundo particular em meu próprio quarto...

Beijos meus.

Julieta Garcia disse...

Que lindo! Delicado, profundo. Parabéns! Gostei muito! =D

Pachelly Jamacaru disse...

Pra onde se foge, do que se foge, pra que se foge, foge não, não foge, quando fugir e, em muitas ocasiões a fuga em si, para dentro de si e dos seus... É o encontrar-se no fugaz das fugas... Semear fugas é colher-se, no devido tempo!
Pachelly J.

Josias de Paula Jr. disse...

Pimba! Muito bom. Bendito encontro, a partir de tua visita ao "inscritos" passo a conhecer essa pródiga sementeira. Parabéns pelo texto e pelo blog"

ps: És uma leitora atenta também. Teus comentários lá no blog...